segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O bilhete

A partir de hoje vou lançar uma série de pequenos excertos de uma história que me estou a atrever a escrever. São pequenas passagens, que podem ou não ter ligação entre elas, e que falam de determinado episódio ou personagem ou alguma situação que ache interessante.


O BILHETE

O bilhete pousado sobre a mesa tirou-lhe a boa disposição que o acompanhava desde a escola. Fausto José trazia resquícios de sorrisos matreiros depois de se ter despedido de Rosinda, com uma surripiada apalpadela no rabo que fez a pequena corar de vergonha, ainda que não conseguisse esconder a contorcida satisfação.

"Há broa no armário. Come e vem ter ao Lameiro"

A primeira frase agradou-o, a segunda nem tanto. Tinha combinado ir armar costelos com o Zé Fernando, tratado entre os amigos por Safarriã, brilhante alcunha atribuída nunca se chegou a saber por quem, mas que tinha pleno significado na desconstrução nominal que deslindava o tríplice frásico francês Saint fait rien, dada a sua excelente apetência para a prática da mandriagem ou, se quisermos ser menos incriminatórios, para a escapatória aos deveres caseiros. Apesar de ter previsto uma tarde profícua na captura de tordos e piscos com o seu primo e amigo Safarriã, tinha encontrado o bilhete em cima da mesa que alterava todos os seus planos. O bilhete era soberano. Sabia as consequências que a desobediência à autoridade daquele pedaço de papel rasgado trariam à compleição do seu rabo. (E nada como começar uma boa história com a repetição da palavra rabo). É que, de fato, não seria a primeira nem a segunda vez que o rabo de Fausto José seria massacrado pela colher de pau ou pela mão pesada da ti Maria, caso não cumprisse as ordens estipuladas pelas letras tremidas devido à força da enxada mas garrafais para não passarem despercebidas. Alegar que não tinha visto o papel não era definitivamente uma boa ideia, já havia tentado em vezes anteriores, mas apenas numa ou outra ocasião, quando a ti Maria viera bem-disposta pela qualidade das batatas, lindas e graúdas, ou quando enchera todos os sacos de pinhas pensando que apenas conseguiria encher metade, é que se escapara à austeridade da madeira da colher.
Apesar das diversas justificações que apresentara, raramente era levado a sério e considerado inocente. Mas não se lhe podia menosprezar a imaginação: ou era porque tinham deixado a porta entreaberta e o bilhete tinha sido levado por uma corrente de ar, ou porque estava atrás da fruteira e ele não o tinha visto, ou porque já tinha combinado ajudar o Safarriã numa qualquer tarefa e não tinha sequer vindo a casa, ou tinha apanhado o Cipriano Batalha no caminho que o obrigara a acompanhá-lo à tasca do Cardoso. Mesmo que tivesse razão, o que era raro, apanhava na mesma, até porque umas açoitadas no lombo só lhe eram benéficas, enrijavam-lhe o corpo e a mente.
A broa, cozida no forno nessa manhã, ainda a sentia quente, embrulhada no pano grosso de cozinha, e, quando lhe barrou a margarina por cima, viu-a amolecer-se passado uns instantes na massa fofa e apetitosa. Não havia nada melhor no mundo do que a broa quente da ti Maria e, só por isso, sabia que não podia faltar à obrigação que o esperava no Lameiro. Era quase uma heresia se o fizesse. Era como terminar um pai-nosso pedindo pelo pão nosso de cada dia, sem ter a decência de acabar a oração pedindo perdão pelas ofensas nem perdoando os que nos ofenderam. Mesmo de tenra idade, Fausto José já sabia a importância que a sua ajuda e dos seus irmãos tinha na geração do pão de cada dia, porque sem trabalho, sem as mãos sujas da terra, sem o peso da enxada às costas e as gretas do ancinho nas mãos, não havia pão, assim ia rezando diariamente o mesmo fado a ti Maria.


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