segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tremoços do Espírito Santo

Nem tudo era miséria nesta vida, até porque tanta labuta havia de merecer alguns momentos de conforto ao corpo, como esse quinquagésimo dia após a Páscoa, a que as liturgias designaram de Pentecostes. Em todos os lugares da freguesia se festejava este dia com os Tremoços do Espírito Santo, uma pequena celebração de rua, feita sem formalismos à porta do respetivo mordomo, que se encarregava de distribuir aos conterrâneos e aqueles que aparecessem ainda que não pertencessem ao lugar, mancheias de tremoços que estes recebiam de sacos abertos, quer de pano ou plástico, ou mesmo cestos de vime, que isto há gente para tudo, dá-se-lhes um saco, querem logo um cesto. Mas não era por isso que a festa acabava, tremoços havia-os com fartura e os queixosos não eram em número tamanho para se formarem sindicatos, embora alguns espicaçassem os intrusos de Aguadalte que, embora fosse terra pegada a Bustelo, não deixava de ser território apartado, pelo que se iam ouvindo vozes incriminatórias:
- Isto não há de ficar fácil pró mordomo. Só de Aguadalte vêm mais de duzentos. É só fazer as contas, o Zé Trinta e os três filhos, cada qual também Trinta, faz cento e vinte. Depois há a mãe, porque os filhos têm sempre uma mãe, vá-se lá saber porque é pecado chamarem-se-lhes filhos da mãe. Mas para dizer que além dos cento e vinte, temos uma mãe que é a Maria Noventa, por isso vejam lá quanta gente é que vem daqueles lados.
O Zé Trinta já estava habituado a esta conversa, não podia sair de casa com a família sem ouvir uma chalaça qualquer, que consistia frequentemente na menção ao esquadrão, companhia ou bateria militar aguadaltense que, em cima de dez pernas, transportava mais de duzentos homens prontos a combater em terras inimigas. Mas o Zé Trinta não suportava era ouvir o Saraiva a chamar-lhe Zé Três, em referência ao número de dentes sãos que ainda conservava na boca. Já não fora uma nem duas as vezes que aqueles se tinham desentendido e atingido verbal e fisicamente, fruto da irreprimível sacanice do Saraiva e do elevado orgulho do Zé Trinta. Uma coisa é um esquadrão militar, sobretudo se se tratar de cavalaria, que lhe traz grande pompa e importância, outra é dizerem-lhe na cara que nem para cavalo tem lugar em tão digna unidade militar devido à podridão da dentadura.
Mas era dia de festa e a tradição, bonita e tão singular que não se conhece igual por essas terras fora, incutia uma boa disposição que perdoava mesmo as insolências mais descabidas de alguns abusadores. Perdoe-lhes nosso Senhor a impertinência e o próprio desrespeito por este dia já que a maioria não sabe sequer que é este o dia em que o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, sabem somente que é o dia em que os tremoços descem sobre os sacos e o vinho desce da pipa sobre os copos, e a ignorância não pode ser castigada.