quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Kubrick de olhos bem abertos

Numa recente discussão com um amigo, não fui capaz de me expressar da melhor forma em relação à minha admiração pelo filme “De olhos bem fechados”, o último do realizador Stanley Kubrick. Bem sei que não se compara a Laranja Mecânica, Nascido para Matar ou ao mítico 2001: Odisseia no Espaço, mas ainda assim conquistou-me sobretudo por um conjunto de cenas extremamente bem filmadas, tanto do ponto de vista da fotografia, dos tempos, da música e de toda a envolvência e intensidade, sobretudo a cena do ritual orgíaco na mansão em Long Island (mostrada no vídeo em baixo), que revela toda a inteligência, génio e maturidade do realizador.

Apesar do enredo simples, o filme trata de sentimentos ambíguos e incómodos à sociedade, que talvez a literatura consiga retratar com mais profundidade. Mas no fundo, o objetivo de Kubrick é claro e bem conseguido, fazer a história navegar entre o plano do consciente e do sonho, mostrando o conflito freudiano clássico entre os nossos instintos e os limites impostos pela sociedade. Talvez o único erro de Kubrick foi ter confiado demais nas estrelas (Tom Cruise e Nicole Kidman), em vez de investir mais nas subtilezas dos personagens. Ainda assim, nego por completo o rótulo de “o último erro de Kubrick” em relação ao seu último filme. Pode não ser genial, mas não deixa de ter a qualidade extraordinária que este mestre do cinema sempre nos mostrou (e além disso, mete muita gaja boa)


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

coices de rabo de vaca

Albano, dada a sua competência, ficou com o arado, que exigia força e controlo. E que ingrata missão a sua, sujeita a tamanha força de braços e domínio astuto sobre o utensílio que tanto depende da dureza e irregularidade da terra, como do próprio movimento inconstante das vacas que, por mais bem dominadas que sejam, não deixavam de ser animais irracionais. Mas a tirania maior da sua tarefa estava mesmo na irracionalidade dos animais que, ao bambolearem a sua cauda, talvez para sacudir as moscas ou mesmo para punirem o intrometido, lhe acertavam com força no corpo. O pobre Albano, além de se esfalfar com a difícil condução do veículo agrícola, ainda era brindado com uns coices de rabo de vaca, a que o Fausto chamava de abre olhos. A grande tirania é que Deus fez as vacas com as caudas apostas ao ânus. Ora, ficando as caudas imundas em merda, alguma mais seca e pesada que sobrava de resquícios anteriores, outra ainda morna da evacuação mais recente, imagine-se a brutalidade que é levar-se com uma pancada excrementícia daquelas na tromba enquanto se empurram vinte quilos de ferro pela terra fora.
E, nem de propósito, foi logo a meio do segundo rego que uma das vacas se lembrou de pôr em ação a sua investida mais baixa e acertou na cabeça do rapaz. A sorte foi que ele vinha com ela abaixada e a cauda lhe acertou de raspão, o que ainda assim não deixou de ser uma grande irritação para Albano, sobretudo depois de ouvir a gargalhada jocosa do irmão.
Mas não foi isso que desencorajou o rapaz, e o arado continuou a bulir, rasgando a terra para as batatas que haveriam de vir. A ti Maria e a ti Jesuína vinham abaixadas sobre os costados pé ante pé, a colocar as batatas a distâncias de dois pés, já imunes à dor do arqueio das costas. O João Tolo e a Coelha vinham lado a lado como que a disputar uma corrida, tapando os regos com a enxada e empurrando a terra ágil e subtilmente.
O sol não dava tréguas e nem as poucas nuvens que pairavam no céu se atreviam a fazer-lhe frente e a atenuar um pouco aquele calor sufocante. Nem uma brisa corria para incentivar os trabalhadores, que se sentiam cada vez mais parte da terra, como se se preparassem para derreter e ficarem ali debaixo dela junto com as batatas. Mas o trabalho ensinara-lhes a resistir a tudo e o sacrifício era inerente às suas vidas, fazia parte do seu quotidiano e, como dizia o Avô Albano, havia alguns que já não podiam viver sem ele.
O terreno parecia não acabar. Quando se começavam os regos de cima, parecia não se ver o fim, perdido na indefinição que o calor abrasador impunha ao horizonte. Mesmo as vacas pareciam cansadas de tanto andarem abaixo e acima, num frete interminável, que até lhes tirava as forças para atacar o opressor com a sua cauda perigosa.
- Quantos regos temos de batatas? – vociferava a ti Maria para a Coelha, a quem incumbira de contar.
- Eu contei cinquenta e dois.
- Está bom. Tapem os que faltem e vamos passar para o milho.
O sol foi descendo vagarosamente e terminaram o trabalho já em cima do crepúsculo. Era quase como as doses do escoado da ti Maria, eram sempre certinhas. A comida acabava quando a fome se extinguia e o trabalho concluía-se mesmo quando o sol se punha. É mais uma mostra da sabedoria campestre, que trabalha mais com o instinto do que com os livros, mas que não deixa de ser tão exata quanto a outra.
Albano sentia os braços e as pernas tremerem-lhe involuntariamente, tinha os farrapos a que chamava roupa imundos de terra e a cara escura do sol, do pó e dos restos de esterco. Era o retrato mais visível da violência a que os corpos eram sujeitos para o sustento da família. Retrato não só de uma família ou de uma região, mas de um país que, em plena segunda metade do século XX, ainda vivia agarrado à terra e dependente das duas mãos que trazia agarradas ao corpo para desbravá-la com ferramentas rudimentares da Idade do Ferro. Mas valia-lhes a honra de um país com uma história e passado gloriosos e a grande respeitabilidade da Presidência do Conselho, que tinha uma visão extraordinária de enriquecimento do país, que consistia na magnífica ideia de tirar aos vivos aquilo que eles precisavam para viver, porque só assim se constrói um grande património, passando fome e privação, em prol de um objetivo maior.
Valia-lhes acima de tudo a fé em Deus, que tudo vencia e tudo fazia esquecer. O corpo estava pobre e fraco mas a alma envolta numa riqueza inesgotável e assegurada pela vida eterna. E assim se ia vencendo a fome e as enfermidades, com a esperança num futuro melhor, até porque pior era difícil.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nelson Mandela

Quando uma personalidade tão importante para o mundo é assim tão estimada, torna-se difícil abrir Mandela...

(www.facebook.com/MakoMau)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Rolling forever

Rolling Stone, considerada uma das melhores músicas de sempre, do grande Bob Dylan foi agora brindada com um videoclip muito interessante e extraordinariamente criativo. Não podia ser uma combinação mais perfeita de música, vídeo e interactividade.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O bilhete

A partir de hoje vou lançar uma série de pequenos excertos de uma história que me estou a atrever a escrever. São pequenas passagens, que podem ou não ter ligação entre elas, e que falam de determinado episódio ou personagem ou alguma situação que ache interessante.


O BILHETE

O bilhete pousado sobre a mesa tirou-lhe a boa disposição que o acompanhava desde a escola. Fausto José trazia resquícios de sorrisos matreiros depois de se ter despedido de Rosinda, com uma surripiada apalpadela no rabo que fez a pequena corar de vergonha, ainda que não conseguisse esconder a contorcida satisfação.

"Há broa no armário. Come e vem ter ao Lameiro"

A primeira frase agradou-o, a segunda nem tanto. Tinha combinado ir armar costelos com o Zé Fernando, tratado entre os amigos por Safarriã, brilhante alcunha atribuída nunca se chegou a saber por quem, mas que tinha pleno significado na desconstrução nominal que deslindava o tríplice frásico francês Saint fait rien, dada a sua excelente apetência para a prática da mandriagem ou, se quisermos ser menos incriminatórios, para a escapatória aos deveres caseiros. Apesar de ter previsto uma tarde profícua na captura de tordos e piscos com o seu primo e amigo Safarriã, tinha encontrado o bilhete em cima da mesa que alterava todos os seus planos. O bilhete era soberano. Sabia as consequências que a desobediência à autoridade daquele pedaço de papel rasgado trariam à compleição do seu rabo. (E nada como começar uma boa história com a repetição da palavra rabo). É que, de fato, não seria a primeira nem a segunda vez que o rabo de Fausto José seria massacrado pela colher de pau ou pela mão pesada da ti Maria, caso não cumprisse as ordens estipuladas pelas letras tremidas devido à força da enxada mas garrafais para não passarem despercebidas. Alegar que não tinha visto o papel não era definitivamente uma boa ideia, já havia tentado em vezes anteriores, mas apenas numa ou outra ocasião, quando a ti Maria viera bem-disposta pela qualidade das batatas, lindas e graúdas, ou quando enchera todos os sacos de pinhas pensando que apenas conseguiria encher metade, é que se escapara à austeridade da madeira da colher.
Apesar das diversas justificações que apresentara, raramente era levado a sério e considerado inocente. Mas não se lhe podia menosprezar a imaginação: ou era porque tinham deixado a porta entreaberta e o bilhete tinha sido levado por uma corrente de ar, ou porque estava atrás da fruteira e ele não o tinha visto, ou porque já tinha combinado ajudar o Safarriã numa qualquer tarefa e não tinha sequer vindo a casa, ou tinha apanhado o Cipriano Batalha no caminho que o obrigara a acompanhá-lo à tasca do Cardoso. Mesmo que tivesse razão, o que era raro, apanhava na mesma, até porque umas açoitadas no lombo só lhe eram benéficas, enrijavam-lhe o corpo e a mente.
A broa, cozida no forno nessa manhã, ainda a sentia quente, embrulhada no pano grosso de cozinha, e, quando lhe barrou a margarina por cima, viu-a amolecer-se passado uns instantes na massa fofa e apetitosa. Não havia nada melhor no mundo do que a broa quente da ti Maria e, só por isso, sabia que não podia faltar à obrigação que o esperava no Lameiro. Era quase uma heresia se o fizesse. Era como terminar um pai-nosso pedindo pelo pão nosso de cada dia, sem ter a decência de acabar a oração pedindo perdão pelas ofensas nem perdoando os que nos ofenderam. Mesmo de tenra idade, Fausto José já sabia a importância que a sua ajuda e dos seus irmãos tinha na geração do pão de cada dia, porque sem trabalho, sem as mãos sujas da terra, sem o peso da enxada às costas e as gretas do ancinho nas mãos, não havia pão, assim ia rezando diariamente o mesmo fado a ti Maria.