quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

coices de rabo de vaca

Albano, dada a sua competência, ficou com o arado, que exigia força e controlo. E que ingrata missão a sua, sujeita a tamanha força de braços e domínio astuto sobre o utensílio que tanto depende da dureza e irregularidade da terra, como do próprio movimento inconstante das vacas que, por mais bem dominadas que sejam, não deixavam de ser animais irracionais. Mas a tirania maior da sua tarefa estava mesmo na irracionalidade dos animais que, ao bambolearem a sua cauda, talvez para sacudir as moscas ou mesmo para punirem o intrometido, lhe acertavam com força no corpo. O pobre Albano, além de se esfalfar com a difícil condução do veículo agrícola, ainda era brindado com uns coices de rabo de vaca, a que o Fausto chamava de abre olhos. A grande tirania é que Deus fez as vacas com as caudas apostas ao ânus. Ora, ficando as caudas imundas em merda, alguma mais seca e pesada que sobrava de resquícios anteriores, outra ainda morna da evacuação mais recente, imagine-se a brutalidade que é levar-se com uma pancada excrementícia daquelas na tromba enquanto se empurram vinte quilos de ferro pela terra fora.
E, nem de propósito, foi logo a meio do segundo rego que uma das vacas se lembrou de pôr em ação a sua investida mais baixa e acertou na cabeça do rapaz. A sorte foi que ele vinha com ela abaixada e a cauda lhe acertou de raspão, o que ainda assim não deixou de ser uma grande irritação para Albano, sobretudo depois de ouvir a gargalhada jocosa do irmão.
Mas não foi isso que desencorajou o rapaz, e o arado continuou a bulir, rasgando a terra para as batatas que haveriam de vir. A ti Maria e a ti Jesuína vinham abaixadas sobre os costados pé ante pé, a colocar as batatas a distâncias de dois pés, já imunes à dor do arqueio das costas. O João Tolo e a Coelha vinham lado a lado como que a disputar uma corrida, tapando os regos com a enxada e empurrando a terra ágil e subtilmente.
O sol não dava tréguas e nem as poucas nuvens que pairavam no céu se atreviam a fazer-lhe frente e a atenuar um pouco aquele calor sufocante. Nem uma brisa corria para incentivar os trabalhadores, que se sentiam cada vez mais parte da terra, como se se preparassem para derreter e ficarem ali debaixo dela junto com as batatas. Mas o trabalho ensinara-lhes a resistir a tudo e o sacrifício era inerente às suas vidas, fazia parte do seu quotidiano e, como dizia o Avô Albano, havia alguns que já não podiam viver sem ele.
O terreno parecia não acabar. Quando se começavam os regos de cima, parecia não se ver o fim, perdido na indefinição que o calor abrasador impunha ao horizonte. Mesmo as vacas pareciam cansadas de tanto andarem abaixo e acima, num frete interminável, que até lhes tirava as forças para atacar o opressor com a sua cauda perigosa.
- Quantos regos temos de batatas? – vociferava a ti Maria para a Coelha, a quem incumbira de contar.
- Eu contei cinquenta e dois.
- Está bom. Tapem os que faltem e vamos passar para o milho.
O sol foi descendo vagarosamente e terminaram o trabalho já em cima do crepúsculo. Era quase como as doses do escoado da ti Maria, eram sempre certinhas. A comida acabava quando a fome se extinguia e o trabalho concluía-se mesmo quando o sol se punha. É mais uma mostra da sabedoria campestre, que trabalha mais com o instinto do que com os livros, mas que não deixa de ser tão exata quanto a outra.
Albano sentia os braços e as pernas tremerem-lhe involuntariamente, tinha os farrapos a que chamava roupa imundos de terra e a cara escura do sol, do pó e dos restos de esterco. Era o retrato mais visível da violência a que os corpos eram sujeitos para o sustento da família. Retrato não só de uma família ou de uma região, mas de um país que, em plena segunda metade do século XX, ainda vivia agarrado à terra e dependente das duas mãos que trazia agarradas ao corpo para desbravá-la com ferramentas rudimentares da Idade do Ferro. Mas valia-lhes a honra de um país com uma história e passado gloriosos e a grande respeitabilidade da Presidência do Conselho, que tinha uma visão extraordinária de enriquecimento do país, que consistia na magnífica ideia de tirar aos vivos aquilo que eles precisavam para viver, porque só assim se constrói um grande património, passando fome e privação, em prol de um objetivo maior.
Valia-lhes acima de tudo a fé em Deus, que tudo vencia e tudo fazia esquecer. O corpo estava pobre e fraco mas a alma envolta numa riqueza inesgotável e assegurada pela vida eterna. E assim se ia vencendo a fome e as enfermidades, com a esperança num futuro melhor, até porque pior era difícil.

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